Últimos sobreviventes de uma tribo amazônica foram localizados. E agora?
Pakyi e Tamadua são os últimos membros conhecidos do povo indígena isolado piripkura
21 de agosto de 2023
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Não havia praticamente nada exceto floresta havia quilômetros, mas então os indigenistas encontraram: um abrigo improvisado e uma fogueira ainda não totalmente apagada. Havia dois conjuntos de pegadas, dois facões e dois lugares para pendurar redes.
"Ele estava aqui agorinha mesmo", disse um dos indigenistas, Jair Candor, agachado embaixo do abrigo, enquanto seu companheiro fazia fotos. Era junho. Candor passara 35 anos procurando um homem que não queria ser encontrado —e, desta vez, não o encontrou por muito pouco.
Esse homem, Tamandua Piripkura, passou a vida inteira fugindo. Não de autoridades ou de inimigos —embora não falte quem gostaria de vê-lo morto—, mas da modernidade.
Tamandua é um dos últimos três sobreviventes conhecidos dos piripkura, subgrupo de um povo indígena maior e que no passado ocupou uma área grande da floresta. Ele sempre viveu isolado nas profundezas da floresta amazônica. Acredita-se que tenha cerca de 50 anos.
Seu parceiro no isolamento foi por muito tempo seu tio Pakyi. Os dois percorriam a floresta, nus e descalços, levando pouco mais que facões e um farolete. A terceira sobrevivente, uma mulher chamada Rita, deixou a Terra Piripkura por volta de 1985 e se casou com um homem de outra tribo.
Mas recentemente, Pakyi, mais velho e enfraquecido, começou a viver perto de um posto da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) na floresta, dedicado à proteção dos dois homens. Ao mesmo tempo, Tamandua, que é visto como a melhor e possivelmente única chance de sobrevivência do povo piripkura, desapareceu.
Os dois homens estão no epicentro de uma questão maior com a qual o Brasil se debate há anos e que encerra consequências profundas para o futuro da Amazônia e dos povos indígenas que vivem ali há muito tempo.
Quem tem o direito à floresta? Os fazendeiros e madeireiros que têm títulos de posse da terra ou dois indígenas cujos antepassados já estavam aqui antes de o Brasil ter um governo?
Depois que Candor encontrou Pakyi e Tamandua pela primeira vez, em 1989 —em uma árvore, buscando mel—, o Brasil na prática tomou o partido das madeireiras. Nas duas décadas seguintes o governo não fez nada, e a floresta foi retalhada por serrarias.
Em 2007, Candor voltou a topar com os dois homens. O governo, então sob uma administração de esquerda e influenciado pela mudança nas atitudes em torno da preservação da Amazônia, reverteu sua posição. O Brasil protegeu 2.500 km2 de floresta (uma área duas vezes maior que a de Los Angeles) apenas para Pakyi e Tamandua.
As proteções enfureceram as pessoas que tinham a posse da terra. Décadas antes o governo vendera a maior parte do território a colonos por valores ínfimos, dentro de um esforço para incentivar brasileiros a explorar a floresta e expandir a economia nacional. As pessoas que herdaram ou compraram esses títulos agora estão contestando a proteção, para voltar a desmatar a área e criar gado.
A luta é encabeçada pelos Penço, família que opera as maiores minas de calcário do Estado e é dona de quase metade da área protegida piripkura. Os Penço argumentam que Pakyi e Tamandua não precisam de tanta terra e que o governo está violando seus direitos em um esforço velado para impedir a extração de madeira.
"Esses dois índios são vítimas que estão sendo utilizadas para fomentar uma pauta ambientalista", disse Francisco Penço, porta-voz da família, em visita recente à floresta com seu advogado –que os deixou com os sapatos sociais enlameados.
Durante séculos, povos indígenas foram vistos como obstáculos ao progresso e foram massacrados mundo afora. Mas, nas últimas décadas, pressões crescentes têm forçado governos a proteger terras indígenas.
No Brasil, essas reservas se tornaram um dos pilares dos esforços para conservar a floresta amazônica. Hoje, 14% da nação —uma área que equivale aproximadamente à superfície somada de França e Espanha— é formada por territórios indígenas.
Mas esses territórios continuaram sob ameaça constante de invasores, e quase 800 indígenas foram mortos desde 2019. Após anos de genocídio e derrubada da floresta, muitas tribos estão reduzidas a apenas algumas dezenas de pessoas.
Mas nenhuma tribo conhecida no Brasil é menor que a dos piripkura, segundo especialistas. E agora as proteções deles correm risco.
Após 15 anos de adiamentos, o governo pretende concluir no início de 2024 um estudo para determinar se os piripkura merecem uma reserva permanente —ou se fazem jus a qualquer proteção que seja.
Os Penço e outros adversários argumentam que a área protegida deve diminuir significativamente ou ser eliminada por completo, em parte porque Pakyi agora vive perto do posto da Funai.
Com isso, provar que Tamandua está vivo tornou-se crucial para a manutenção das proteções.
Assim, em junho, Candor, que tem 63 anos, é grisalho e barbado, conduziu sua picape enlameada por cinco horas na floresta, percorrendo uma estrada de terra aberta pelos Penço para extrair madeira. Estava indo ao posto da Funai para procurar por Tamandua, que não via havia cerca de dois anos.
Pouco depois de ele chegar, uma figura apareceu diante da porta de tela do posto: um indígena coberto de urucum. Era Pakyi.
Cautelosamente, em um primeiro momento, Pakyi entrou e olhou os recém-chegados: agentes do governo e jornalistas do New York Times. Mas não demorou a baixar a guarda, sorrindo, apertando mãos e puxando barbas. Ele começara a usar roupas, vendo que outras pessoas o faziam. Sua camiseta manchada estava de trás para frente, exibindo sobre seu peito a frase: "nenhum de nós é tão bom quanto todos nós juntos".
Ele se mostrou muito disposto a reencenar caçadas passadas, mas ignorou ou se recusou a responder perguntas sobre sua família e seu sobrinho.
Um dia depois, porém, Pakyi se acomodou sobre uma tora de madeira e começou a falar. Com a ajuda de um tradutor, disse que Tamandua está na floresta e não quer ser encontrado.
Uma aldeia destruída
Uma das últimas vezes que Tamandua foi visto, em 2017, ele e Pakyi foram até o posto da Funai com um pedido simples: acendam nosso farolete.
Menos de um século atrás, os piripkura viviam em uma aldeia com mais de cem pessoas —possivelmente muito mais, acreditam antropólogos. Dispunham de tecnologia semelhante à de seus vizinhos: fogo, armas, cerâmicas, plantações.
Não está claro como os piripkura passaram de uma aldeia para apenas três indivíduos. Antropólogos montaram os pedaços da história baseados em grande medida nos relatos da terceira sobrevivente, Rita, que seria irmã de Pakyi. Rita disse que seus familiares lhe contaram que as coisas mudaram com a chegada dos brancos.
Na década de 1940, o governo estava distribuindo terras na Amazônia a preços irrisórios. "Borracha para a vitória!" dizia um cartaz do governo brasileiro em 1943, convocando homens a se tornarem seringueiros em apoio ao esforço de guerra dos aliados.
Muitos colonos massacraram indígenas. O governo brasileiro reconheceu que durante a ditadura militar, de 1964 a 1985, pelo menos 8.300 indígenas foram assassinados.
Parentes de Rita, que tem cerca de 60 anos, lhe contaram que uma aldeia piripkura foi dizimada em um massacre. Homens desmembraram corpos, mutilaram genitálias e deixaram vítimas empaladas em trocos de árvores, disse Rita a funcionários do governo.
Quanto Rita e Pakyi eram crianças, restavam apenas dez a 15 membros de seu grupo. Como uma das poucas mulheres, Rita era altamente cobiçada. Ela teve dois filhos com um homem de outra tribo, e quando ele morreu após uma infecção, Pakyi e o pai dela quiseram se casar com ela. "Vocês estão loucos?", ela falou em uma entrevista. "Eu me casar com meu pai?"
Então chegou o momento que dividiu a família definitivamente: Pakyi matou os dois filhos de Rita.
Primeiro ele matou seu filho mais velho, que tinha 4 ou 5 anos, porque ele estava chorando, segundo Rita e um relatório do governo de 2012. Pakyi teria cortado o couro cabeludo do menino e sepultado seu corpo. Mais tarde ele levou a filha bebê de Rita para a floresta e a deixou ali. Segundo Candor, Pakyi nunca falou sobre isso, e o governo nunca investigou os crimes.
Rita fugiu, correndo horas até chegar a uma fazenda de gado, a Fazenda Mudança, onde sabia que homens brancos viviam. A fazenda pertencia aos Penço.
"Acho surpreendente quando dizem que fazendeiros querem matar índios", comentou Penço. "Nós protegemos Rita quando ela precisou escapar."
"Ele só pediu para que não o matássemos"
A Fazenda Mudança foi o fim do isolamento de Rita. De 1983 a 1985 ela trabalhou na fazenda, onde começou a usar roupas e a falar português. Segundo relatório de um antropólogo, ela foi maltratada e espancada com um cabo de vassoura.
Em 1985, ela fugiu novamente e acabou encontrando os indigenistas que estavam procurando sua tribo. Rita mostrou a eles onde sua família havia vivido, mas quando eles chegaram ao local, as casas estavam abandonadas.
Em 1989, ela participou de outra expedição, desta vez com Candor. No segundo dia, depois de visitar a sepultura do filho de Rita, eles atravessaram um pântano, com água até a altura do peito, para chegar a uma ilha.
Ali eles viram Pakyi e Tamandua procurando mel. Pakyi fugiu. Tamandua estava numa árvore e não teve como fugir. "Ele começou a tremer", contou Candor. "E só pediu para a gente não matá-lo."
Pakyi e Tamandua acabaram levando Rita e Candor para o abrigo deles. O grupo passou duas semanas junto, e Candor fez a mesma pergunta a Pakyi e Tamandua inúmeras vezes: onde estavam os outros?
"Falaram que eles tinham morrido. Então, em outros momentos, diziam que eles estavam ali fora em algum lugar", disse Candor. "Mas nunca disseram onde, por que e nem o que aconteceu."
"Regras do jogo"
A família Penço vinha extraindo madeira da região havia anos, boa parte dela destinada aos Estados Unidos para ser usada em pisos. As proteções promulgadas em 2008 suspenderam esse negócio abruptamente.
O patriarca da família, Celso Penço, comprara lotes de floresta do governo a preços baixos, décadas antes. Quando morreu, em 2016, ele deixou 2.000 km2 de terra amazônica a sete herdeiros —uma herança com metade da área de Long Island, Nova York. Dois terços da terra ficava dentro da zona protegida piripkura.
Francisco Penço, filho de Celso, disse que, depois de ter distribuído a terra, o governo agora estava mudando as regras do jogo. Para ele, se o governo quer que a terra fique para os piripkura, deveria pagar os proprietários. Ele calcula que sua família deveria receber algo entre US$ 45 milhões e US$ 70 milhões (cerca de R$ 223 milhões a R$ 347 milhões).
Penço também questionou se os indígenas são realmente isolados, destacando que em vários momentos a medicina moderna os manteve vivos.
Em um caso, em 2018, Candor e um colega carregaram Tamandua para fora da floresta porque ele não conseguia andar. No hospital, médicos descobriram um coágulo sanguíneo em seu cérebro.
Pakyi e Tamandua há décadas praticamente não têm contato humano algum a não ser um com o outro. Segundo antropólogos, eles acreditam que a tecnologia moderna vem de uma divindade que vive acima das nuvens, sendo trazida por pessoas brancas em aviões. Agora eles estavam em um voo comercial para São Paulo, onde Tamandua seria submetido a uma cirurgia cerebral. No aeroporto, tentaram urinar ao ar livre. No avião, Pakyi agarrou os seios de uma mulher.
Eles passaram 45 dias em São Paulo, dormindo em redes que o hospital pendurou para eles. "O tempo todo ficavam pedindo para ir embora", contou Cleiton Gabriel da Silva, o agente federal que os acompanhou. "A cidade os deixou traumatizados."
A experiência foi especialmente difícil para Tamandua. "Abriram a cabeça dele, lhe davam injeções o tempo todo, o sedavam", disse o agente. "Ele não entendia que isso era feito para salvar sua vida."
A esperança final
Pouco após o retorno de São Paulo, Pakyi começou a ficar perto do posto da Funai. Ele cozinha pequenas aves que os funcionários capturam para ele e tenta jogar futebol, batendo na bola com as mãos. A relação entre ele e Rita ainda é tensa, mas ele dorme à noite com uma coruja empalhada que ela lhe deu.
Mas Tamandua desapareceu.
Por isso, em junho Candor retornou ao posto, agora acompanhado pelo New York Times. Ali encontrou o abrigo com os dois conjuntos de pegadas, a apenas 30 minutos de caminhada de distância na floresta.
Para ele, foi uma prova de que Tamandua continua vivo —uma descoberta que pode se mostrar crucial para as proteções.
Mesmo assim, a criação de uma reserva indígena piripkura pode salvar esta parte da floresta, mas talvez não salve os piripkura.
Muitos anos atrás Candor levou Pakyi e Tamandua para a aldeia de outro grupo indígena que falava uma língua semelhante. Candor esperava inspirá-los.
Antropólogos considerariam qualquer filho dos dois homens mais uma geração piripkura. Candor não pensa que Pakyi, com sua idade e seu temperamento, vá ter filhos. Mas acredita que Tamandua poderia.
"Se houvesse sinal de interesse entre ele e uma das moças dali, com certeza", falou o indigenista. Mas as mulheres da aldeia estavam mais interessadas em seus smartphones.
"Envolvidas com tecnologia, elas não vão querer vir para esta vida aqui, perambulando pela floresta", disse Candor.
Quanto a Rita, boa parte da mata onde sua família viveu no passado foi derrubada, assim como a área sagrada onde as mulheres de seu povo davam à luz, incluindo ela própria.
Ela disse que se fosse para mais um piripkura nascer, isso ficaria por conta de uma pessoa: Tamandua.
"Precisamos encontrá-lo", ela disse.
Tradução de Clara Allain